Sobre Madame Satã
Ou melhor, sobre João Francisco dos Santos
“Nasci pra esse dia. Pra receber o aplauso do meu público”
Madame Satã
Então você decide que é hora de visitar o Brasil pela primeira vez na tua vida. Naturalmente, você também decide que não há como voltar daquele país sem pagar uma visita ao Rio de Janeiro, o cartão-postal dos brasileiros. Pois bem. Você finalmente aterrisa na tão famosa “cidade maravilhosa”, visita o Pão de Açúcar, o Cristo Redentor, o Arpoador, e vai tomar um sol e um mate com limão e gelo na praia de Ipanema pra se refrescar. Nessas idas e vindas como turista pela cidade, você acaba conhecendo alguns cariocas (como são conhecidos os moradores de lá) que te convidam para tomar uma cerveja, ou “um chopp,” no reduto da boemia na cidade. E é no final do dia, ao chegar na “Lapa” que tua diversão começa!
O bairro da Lapa no Rio é hoje famoso pelo monumental Arco da Carioca, pelo bondinho que passa em cima dele (sim, ele ainda funciona!) e que liga o Morro de Santa Teresa ao Centro da cidade, e pelo lendário Circo Voador, o espaço cultural símbolo da região. A Lapa não é só construções; é também a história dos espetáculos do Cassino da Urca (uma das mais badaladas casas noturnas que o Rio já testemunhou, extinta em 1946 após a proibição de jogos de azar no Brasil), do Beco das Garrafas (uma travessa sem saída onde a bossa nova floresceu pro mundo no final da década de 50), e dos inúmeros pianos-bar, das casas de samba, dos movimentos musicais black, disco e funk da década de 70, e, mais recentemente, da música eletrônica.
João Francisco dos Santos (1900-1976) foi um dos mais assíduos frequentadores da Lapa, só que lá atrás, durante a década de 1930. Foi ele também o responsável pela criação de Madame Satã, a célebre drag queen que inspirou o título do nosso filme do mês, o de número 53 na lista da Abraccine. Madame Satã, virou mito emblemático não só da vida noturna e carioca, mas também da cultura urbana marginal brasileira do século XX. O filme, primeiro longa-metragem dirigido por Karim Aïnouz (aplausos!), resiste à tentação comum das cinebiografias (aquelas que utilizam-se da cronologia tradicional de acontecimentos na vida de uma figura qualquer) e começa com a leitura de um relatório policial em voz offset explicando a prisão da Madame, vista na tela toda ensanguentada e agredida fisicamente. Um corte-flashback nos transporta para o espetáculo intimista cabaret “1001 Noites” na casa de espetáculos onde trabalhava como figurinista. Nos transporta também para o início da narrativa de João Francisco inserido naquele universo de prostitutas, bêbados, artistas, boêmios, suburbanos, gays, enrustidos, capoeiristas e negros que era a Lapa em 1932.
O filme privilegia o círculo de amigos, família, os “bicos” (gíria para empregos temporários no Brasil), a índole irônica e extrovertida de João Francisco que tinha gosto inerente pela malandragem e boemia. Assim, Karim deixa claro que essa figura histórica não foi só o mito Madame Satã. João Francisco foi também, nas palavras do jornalista Paulo Francis, uma espécie de “gunfighter da Lapa”, um Robin Hood tropical que, ao invés do arco e da flecha, utilizava-se da capoeira para enfrentar a autoridade policial do Rio de Janeiro em nome dos marginalizados, pobres, e descriminados. De fato, João Francisco encapsula quase todas as categorias da chamada cultura marginal urbana: além de ter sido negro, pobre e homossexual, foi também presidiário, pai adotivo, transformista, analfabeto, andrógeno, malandro. Todas ainda hoje, depois de mais de 80 anos, tão atuais para os debates correntes sobre homossexualismo, homofobia, intolerância sexual, preconceito racial, disparidade de gênero, exclusão e marginalidade social. É por essas e outras que, para os olhos do expectador de 2018, Madame Satã poderia ser rotulado de “filme-ativismo”; Madame Satã, uma figura emblemática de resistência “fora da lei”; e Karim, uma espécie de embaixador da cultura LGBTQIA brasileira—“O fato de ser gay não me torna menos homem”, é o que afinal grita João Francisco quando sai no braço com outro malandro.
Mesmo que nada desses assuntos te interesse, o filme merece um balde cheíssimo de pipoca pelas questões técnicas,um verdadeiro primor! A ambientação histórica é bem traduzida no figurino, direção de arte, maquiagem e trilha sonora com canções que marcaram a época (Noel Rosa e Ismael Silva, por exemplo) são uma aula sobre a memória cultural brasileira. A atuação de todos é também de nota, com especial menção à de Lázaro Ramos que incarnou João Francisco e a Madame impecavelmente—Madame Satã foi, inclusive, o filme que o incluiu no hall dos autores excepcionais do cinema brasileiro. Isso sem mencionar a fotografia magistral de Walter Carvalho (atenção! Walter Carvalho também fez a fotografia de Abril Despedaçado, criticado “minutamente” no nosso mês de Abril. Ela confere um tom lúgubre, sujo à narrativa, algo que deu vida, de maneira bastante coerente, à decadência do bairro da Lapa não só naquela década, mas sobretudo nos dias atuais. A mesma Lapa que você decide visitar quando pisa teus pés no Rio de Janeiro.
FICA A DICA:
- Presta atenção na câmera da cena em que João sai da prisão e é recebido com uma festinha por Laurita e Tabu. É vigorosa, poderosa, cheia de delicadeza e feita em um plano-sequência sem corte algum, ao som de uma das canções mais clássicas da época: “Se você Jurar”, composta por Ismael Silva em 1931 e interpretado por Francisco Alves e Mário Reis. Quer ouvir?
CURIOSIDADES:
- Madame Satã foi nomeado para prêmios no Brasil e por aí afora 35 vezes, abocanhando 21 deles;
- João Francisco teve uma extensa ficha criminal. No total foram quase vinte e oito anos de prisão por agressões, resistência à prisão, desacato à autoridade, furto, ultraje público ao poder, porte de arma e assassinato;
- João Francisco era também apaixonado pelo carnival carioca. Foi assim que, em 1942, ao desfilar no bloco de rua Caçados de Veados, surgiu o nome lendário. Nesse desfile, ele se apresentou com a fantasia de Madame Satã, inspirado pelo filme homônimo de Cecil B. DeMille.
- O filme de Karim não é o único que homenageia João Francisco. A Rainha Diaba, filme de 1974 dirigido por Antonio Carlos da Fontoura, também se inspirou no personagem histórico drag. O filme está todo no Youtube, pra você que não precisa de legendas para seguir.
Autora: Patrícia Anzini
Colaboração e tradução: Maria Wróblewska
Fot. Noom Peerapong, Unsplash; Arcos da Lapa, Wikimedia; Lázaro Ramos como João Francisco Santos/Madame Satã, Alekinoplus.pl; Lázaro Ramos como João Francisco Santos/Madame Satã, SFGATE.com.