Os Inconfidentes – crítica
E Com a Palavra, Os Revolucionários do Brasil!
“Dez vidas eu tivesse,
Dez vidas eu daria!”
Tiradentes
Quando Joaquim Pedro de Andrade decidiu passar para as telas uma das revoluções, ou melhor, tentativas de revolução mais memoráveis da história brasileira, ele já era considerado um dos diretores mais cultos e refinados que o Brasil já teve tanto pela crítica quanto pelos cineastas de sua época. Não por menos: anos antes d’ Os Inconfidentes vir ao público em 1972, Joaquim Pedro já era internacionalmente aclamado por sua participação com a história “Couro de Gato” em Cinco Vezes Favela, o filme de 1962 que inaugura o movimento cinematográfico brasileiro mais famoso por aí afora—o Cinema Novo (sim, aquele mesmo que contou com a participação do famoso diretor Glauber Rocha). Isso sem mencionar sua histórica adaptação iconoclástica de Macunaíma em 1969 para o cinema, o livro mais reconhecido do escritor modernista Mário de Andrade, publicado pela primeira vez no Brasil em 1928. É por isso, e muito mais, que “Na cabeça e na Tela” decide fechar o ano de 2018 com uma homenagem ao filme na posição 89 da lista da Abbraccine.
Se existe um herói político verde e amarelo, isto é, brasileiríssimo, o seu nome é Joaquim José da Silva Xavier, vulgo Tiradentes (1746-1792). E é aparentemente sobre esse personagem histórico tão contradiório (já explico o “aparentemente”) que se trata Os Inconfidentes. Tiradentes, assim popularmente conhecido por ter exercido rudimentarmente a profissão de cirurgião dentista (“tira-dentes”), foi apontado por dedo-duros como o principal líder de uma tentativa de revolução surgida na então capitania das Minas Gerais, em 1789 (hoje um dos estados oficiais do Brasil). Além de Tiradentes, a “Inconfidência Mineira”—o nome escolhido pelos historiadores para memorializar essa conspiração—envolveu militares, membros da elite mineira, proprietários rurais, intelectuais e até clérigos. Embora todos descontentes com a dominação portuguesa na região, sobretudo com o abuso na cobrança de impostos sobre o ouro extraído na região, esses membros discordavam sobre qual destino dar às Minas Gerais: uns diziam que a capitania deveria ser uma república de base não-escravocrata (inspiração advinda sobretudo dos ideais liberais do iluminismo francês e da América); outros aspiravam uma “mera” mudança na monarquia, ou seja, a coroa deveria ser brasileira, e não mais lusitana. Divergências à parte, você, que é brasileiro, talvez se lembre do final dessa história toda lá dos teus anos de escola. Você, que é polaco, aqui vai: embora a conspiração tenha ficado só nisso mesmo, seus participantes foram todos presos e julgados em um processo que durou quase quatro anos. Até que em 1792, todos os acusados tiveram clemência e penas transformadas sobretudo em exílio, com excessão de um: em 21 de Abril—um dos feriados nacionais no Brasil, por sinal—Tiradentes é enforcado, decapitado e esquartejado. E para que os súditos da Coroa Real portuguesa aprendessem a lição, sua cabeça foi encravada em um mastro para exposição pública e os pedaços do seu corpo espalhados pelos caminhos das estradas das Minas Gerais (!!).
Embora o final desse episódio soe mais como um mote para um filme de terror, Joaquim Pedro apropriou-se da história dos “quase” revolucionários de Minas Gerais para renovar o cinema político brasileiro de então. O diretor aproveitou-se de um evento histórico para construir uma metáfora brilhante (e bem perigosa, diga-se de passagem) para criticar o papel dos artistas e da intelectualidade brasileira daquela época que, nada mais nada menos, coincidia com o auge da ditadura militar no país (1968-1975). Vale lembrar que, embora o regime militar no Brasil tenha oficialmente começado em março de 1964, a coisa pegou mesmo fogo a partir de 13 de dezembro de 1968, logo após o famosíssimo decreto do Ato Institucional Número 5, ou simplesmente AI-5. Grosso modo, esse decreto fechou o Congresso Nacional e a Assembléia Legislativa em todos os estados, cassou mandatos, suspendeu o direito de habeas corpus, garantiu poderes totalitários aos presidentes e—pior de tudo—institucionalizou a tortura, a censura e qualquer outro tipo de intimidação. Por isso alguns historiadores apelidarem o AI-5 de “segundo golpe”.
E aqui vai minha explicação para o “aparentemente” acima: Os Inconfidentes é, na verdade, a sacada de Joaquim Pedro em perceber que a história do heroi nacional, o Tiradentes, dava muito pano pra manga pra falar a respeito das contradições históricas, políticas e intelectuais da década de 1970. A mensagem é clara e passa longe de mera propraganda ativista: o filme nos alerta contra atitudes apressadas, improvisadas e ditas “revolucionárias” por pequenos grupos que, embora proclamem-se representantes das massas e da maioria oprimida, são de fato guiados por utopias e ideais infundados, irrealistas e muitas vezes ineficazes. Crítica que invade até mesmo o roteiro e as questões estéticas do filme. Os Inconfidentes passa longe de ser “fácil” de se assisitr. Muito pelo contrário: os diálogos todos foram construídos com versos dos poetas e também inconfidentes Cláudio Manoel da Costa, Alvarenga Peixoto e Tomás Antônio Gonzaga, bem como com frases dos Autos da Devassa, a documentação oficial dos interrogatórios (que notoriamente incluia os momentos de tortura, assim como os da década de 70) feito por representantes da coroa portuguesa com Tiradentes & co.
Material que não foi “atualizado”, ou seja, Joaquim Pedro optou por construir os diálogos entre os personagens do filme com o português vernáculo do século 18, cujas palavras hoje ou caíram em desuso, ou são desconhecidas, ou simplesmente arcaicas, desafiando—e muito—a capacidade de compreensão até mesmo de um falante nativo. Isso sem falar nos movimentos de câmera longos, nas sequências complexas e complicadíssimas, na falta de informação histórica para o expectador (o filme fala muito pouco sobre o contexto politico e histórico da conspiração), na fotografia arquitetada como numa peça teatral e na atuação, também bem teatral, dos inconfidentes—eles até encaram a câmera, e nós, com bastante frequência. O resultado é o seguinte: aqueles passíveis de “entender” o filme com mais facilidade são exatamento os mesmo que Joaquim Pedro queria criticar: a classe intelectual.
Os Inconfidentes é, sim, um filme trágico, cansativo, difícil de assistir. Até mesmo incompreensível em alguns momentos. Mas, para aqueles dispostos a fazer o dever de casa antes de apertar o play, vale a pena, sobretudo para os brasileiros que hoje vivem num país depolaridades agudas, censura indireta, policiamento de palavras, frases infundadas e sem nenhuma conjectura crítica ou histórica. Tiradentes ainda faz-se necessário parar repensarmos em como o significado da palavra “revolução” tem se transformado desde o final do século 18 até os dias atuais.
FICA A DICA:
- Os Inconfidentes está todo disponível online no Youtube para você que quer praticar teu português.
- Quer um exemplo? Uma das cenas mais fantásticas em relação aos movimentos de câmera magistrais do filme começa por volta das 52 minutos.
CURIOSIDADES:
- O AI-5 foi decretado pelo segundo presidente-ditador Artur da Costa e Silva e durou 10 anos. A ditadura military brasileira foi levada a cabo por cinco ditadores no total.
- Há uma teoria da conspiração que diz que Tiradentes, na verdade, conseguiu escapar e se mudar para a França.
Autora: Patrícia Anzini
Colaboração e tradução: Maria Wróblewska
Fot. Noom Peerapong, Unsplash; IMDB, Cartaz do filme „Os Inconfidentes” com José Wilker; Wikipedia: Tiradentes esquartejado.