Que Horas Elas Vão Começar a Filmar?
„Que Horas Ela Volta? não é apenas um filme.
É um espelho.”
E foi somente em 1977 que as Nações Unidas, a organização intergovernamental criada em 1945 com o objetivo de promover a cooperação internacional entre os países, reconheceu oficialmente o “8 de março” como o dia oficial para celebrar (e, claro, não deixar cair no esquecimento) as conquistas sociais, econômicas, culturais e políticas de todas as mulheres que já existiram (!)—e que ainda existem, certamente. Embora as condições de vida e de trabalho, o direito ao voto, a luta constante contra o abuso doméstico, o preconceito, e atrocidades infinitas tenham, de fato, mudado desde os idos da década de 10 do século passado (a primeira celebração aconteceu em 28 de fevereiro de 1909 nos Estados Unidos, seguida de manifestações e marchas em outros países europeus nos anos seguintes), as mulheres ainda tem um longo caminho pela frente pra conquistar a tão almejada igualdade e equidade de gênero. Sobretudo quando essa desigualdade se manifesta no mundo cinematográfico. E, sobretudo ainda, quando esse mundo cinematográfico é o brasileiro.
Bem, para que essa critiquinha do mês de março não vire uma criticona sobre as desigualdades mais relevantes com as quais as mulheres brasileiras lidam atualmente, vou me limitar ao nosso interesse (sim, filmes!) e no que os santos fatos nos ensinam. A situação sobre à inclusão e igualdade de oportunidades referente a gênero e raça na indústria brasileira de audiovisual é mais ou menos essa: de acordo com os dados levantados pela a Agência Nacional do Cinema, a Ancine, em 2016 (o primeiro ano, por sinal, que contemplou um estudo sobre à raça no cinema nacional), dos 142 longas-metragens brasileiros lançados nas tantas salas do país, somente 20.3% (vamos calcular: um total de 29 filmes) foram dirigidos por mulheres brancas e nenhum (isso mesmo, nenhum meus caros leitores!) contou com uma mulher negra como diretora. E o resto da porcentagem, fica com quem? 75.4% (por volta de 107 filmes) foram dirigidos, como já esperávamos, por homens brancos. E isso só falando da direção. Um fato não muito animador para um país cuja população total é de 51% de mulheres e 54% de negros, hun?
Que Horas Ela Volta?, dirigido por Anna Muylaert, podia melhorar estatística para o 28, se não estreiasse ainda em 2015.faz parte da lista desses 27 filmes. Aplaudido em festivais internacionais antes mesmo de ser lançado no Brasil, o filme, idealizado em 1996 e reescrito até poucas semanas antes de ser rodado em 2015, fora inicialmente chamado de A Porta da Cozinha, título mais que sugestivo para nossa critiquinha. Aqui vai a sinopse pra justificar a sua pipoca da semana: a protagonista é a pernambucana (designação dada aos brasileiros que nascem no estado de Pernambuco) Val, interpretada pela mais-que-famosa-no-Brasil Regina Casé. Val é uma babá-empregada doméstica—e pau pra toda a obra—que deixa a filha Jéssica (Camila Márdila) com a avó para morar com os patrões numa mansão no bairro chiquê do Morumbi, zona sul de São Paulo. Como o tempo também voa no cinema, os anos se passaram para Val e, quando já financeiramente confortável, ela recebe um telefonema de Jéssica dizendo que vai à São Paulo (veja bem!) prestar vestibular, o temido exame nacional que dá acesso ao ensino superior no Brasil. A Val, toda cheia de culpa de ter deixado Jéssica pra trás, diz sim ao pedido de sua filha: posso morar contigo por um tempo? Jéssica chega e, como uma espécie de “visitante sem nome” do Teorema (1968) de Pasolini, bagunça toda a estrutura até então impenetrável daquela casa. E da hierarquia que envolve as pessoas que moram naquela casa.
Foi a primeira vez que um universo tão conhecido pelos brasileiros, o das empregadas, foi retratado com respeito, profundidade, e arte no cinema nacional. Tal qual a epígrafe que abre essa critiquinha, e uma das frases da própria Anna, Que Horas Ela Volta? é, de fato, um espelho que reflete esse universo por vários e diferentes ângulos: nos diálogos (Val não conversa, mas simplesmente responde a comandos que indicam afazeres e ordens a serem cumpridas com os famosos pronomes de tratamento entre patrões e empregadas no Brasil: doutor Carlos e dona Bárbara); nas questões raciais e sociais (Val é a típica nordestina que se muda para a cidade grande abandonando tudo e todos “em busca de uma vida melhor”); nas questões linguísticas (Val, com seu sotaque carregadíssimo e desleixo gramatical, usa gírias e expressões regionalistas a rodo); e no preconceito que o filme não faz esforço algum pra esconder: o quarto de despejo apertado, mal ventilado e amontoado de objetos velhos que não servem pra nada é exatamente o local onde nossa protagonista vive.
Talvez a questão mais interessante do filme seja a maneira com a qual esse universo reflete-se também, e incansavelmente, nas questões técnicas. Val ou aparece entre paredes, entre ângulos estranhos e claustrofóbicos, ou simplesmente de costas para nós, espectadores, ou atrás de portas e janelas (inclusive a do ônibus, veículo que poderia transportá-la para outro ambiente menos sufocante que aquela mansão simboliza); a luz dentro do apartamento é marcadamente escura, com exceção da cozinha, é claro, pois lá é o habitat primordial das empregadas, onde a educação afetiva acontece desde os tempos imemoriais em que o Brasil ainda era um país de escravos, diga-se de passagem; e a câmera—exaustivamente parada—honra à risca o título de “camera-olho”: ela move-se e capta como se fosse o olho da Val. Ou seja, a câmera reflete o olhar da nordestina que se mudou para a cidade grande em busca de oportunidades e que acabou estagnada em uma estrutura (a mansão) marcadamente hierarquizada (os patrões), com pouca ou quase nenhuma possibilidade de mudança. Até que Jéssica, a filha de Val, caso você já tenha esquecido, entra em cena para mudar um pouco o final dessa história tão típica e trágica de tantas empregadas do Brasil. Como? Corra assistir ao filme!
Vamos esperar para que outras Vals apareçam não só no cinema nacional, na frente ou atrás das câmeras. Vamos esperar que não só o Ministério da Cultura brasileiro, mas também os grandes festivais internacionais como a premiação do Oscar e Cannes fomentem o crescimento da presença feminina no cinema através da criação de categorias para premiar filmes feitos por mulheres e comissões julgadores paritárias. Vamos esperar, também, que o estudo Diversidade de Gênero e Raça no audiovisual brasileiro de 2017 (assando no forno para sair quentinho em junho desse ano como parte do Observatório do Cinema e Audiovisual, o OCA) nos dê um motivo a mais para comemorar o dia 8 de março em 2019.
Parabéns a todas as mulheres brasileiras, polacas, ou de qualquer outro canto do planeta.
Comendo pipoca, ou não.
FICA A DICA
- E não perca o momento em que as luzes da cozinha, o ambiente sempre mais iluminado do filme todo, se apagam!
- Não perca também o momento em que Val entra na piscina da mansão e se molha com a água. Um momento mais que simbólico para o renascimento, e o desfecho, de nossa heroína.
CURIOSIDADES
- Quer saber mais sobre a situação das mulheres na cinematografia brasileira? Aqui vai um link que vai esclarecer tuas dúvidas todas! (O texto encontra-se em português).
- Boa novas a todos! A Ancine acaba de criar (fim de 2017) uma Comissão de Gênero, Raça e Diversidade formada por 14 membros (a presidente é uma mulher!) com o objetivo de desenvolver atividades ligadas à inclusão e igualdade de oportunidades e tratamento aos membros de grupos discriminados da indústria cinematográfica nacional. Quer saber mais sobre isso também? Não seja por isso.
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Autora: Patrícia Anzini
Colaboração e tradução: Maria Wróblewska
Edição: Magdalena Walczuk
Fot. Noom Peerapong, Unsplash; Bahianoticias, Flickr, Ministério da Cultura, Flickr.