Ilha das Flores
As cenas todas do filme foram registradas no bairro Arquipélago do município de Porto Alegre, estado do Rio Grande do Sul, lá embaixo no mapa do Brasil, pertinho do Uruguai (Google Maps!). Além da Ilha Grande dos Marinheiros, a maior de Porto Alegre, fazem parte do bairro Arquipélago outras ilhas, como a do „Pavão”, a das „Garças” e a mais famosa delas todas, a „Ilha das Flores”. Além do nome de uma ilha no bairro de Arquipélago do município de Porto Alegre, Ilha das Flores é também o título de um filme curta-metragem que Jorge Furtado dirigiu em 1989. Além do título escolhido por Jorge Furtado, é também o curta-metragem selecionado para ocupar a décima terceira posição na lista da Abraccine, e também o tópico para nossa critiquinha do mês.
A história do filme é resumida pela própria voz offset (Paulo José) que narra toda a trajetória do „tomate” durante os 13 minutos de filme: „O tomate, plantado pelo Senhor Suzuki, trocado por dinheiro com o supermercado, trocado pelo dinheiro que Dona Anete trocou por perfumes extraído das flores, recusado para o molho do porco, jogado no lixo e recusado pelos porcos como alimento, está agora disponível para os seres humanos da Ilha da Flores”. Em outras palavras, o narrador de Ilha da Flores (tão verborrágico!) guia o expectador que acompanha a trajetória de um tomate colhido na plantação do „Senhor Suzuki” até chegar ao seu despejo e consumo por uma criança no aterro sanitário da Ilha das Flores, passando pelo supermercado e pela casa de uma consumidora, a tal Dona Anete.
A história real, entretanto, é a seguinte: durante a década de 80 no Brasil, um tal representante anônimo da extinta Rede de Supermercados do Sul levava à ilha gaúcha („gaúcho(a)” é nome que se dá aos habitantes e a qualquer coisa que venha do Rio Grande do Sul) tanto alimentos com embalagens defeituosas como aqueles que não poderiam ser expostos nas prateleiras por não serem esteticamente vendíveis (as tais „Frutas Feias”). Também chegava à ilha o lixo orgânico para ser despejado no aterro local. Para a comunidade ao redor, essas eram as únicas maneiras de se ter acesso a alimentos em geral. Embora as doações tenham sido interrompidas por conta da fiscalização da vigilância sanitária brasileira, a história toda continuou e foi parar nos ouvidos dos cineastas pertenentes à então recém-criada Casa de Cinema de Porto Alegre. A equipe, liderada pelo novato diretor Jorge Furtado, estava imbuída da missão de realizar um documentário sobre a temática do lixo. E então surgiu a idea de rodar o Ilha das Flores para retratar tudo isso: o desperdício de comida, flores, porcos, tomates e a realidade massacrante da miséria que grande parte da sociedade brasileira estava vivendo em fins de década de 80.
De fato, Furtado captou a realidade daquela comunidade no meio daquele despejo orgânico todo. Mas ao fazer isso, o diretor adicionou algumas „cositas” aqui e ali que não correspondiam com a história real. Explico: no filme, além de ser só ao lixo orgânico do aterro que as pessoas tinham „acesso” (as aspas se justificam porque a tal voz em offset deixa claro que os habitantes tinham, na verdade, só 10 minutos para recolher os alimentos que conseguissem), esse acesso — e isso foi o que mais chocou todos por aí afora, diga-se de passagem — era só permitido aos alimentos que „os empregados do dono do porco julgaram inadequados para o porco”. Ou seja, os porcos, no filme, estão à frente dos seres humanos na prioridade de escolha dos alimentos do aterro sanitário da „Ilha das Flores”. Essa „ficção”, além de complicar significadamente a primeira frase que aparece na tela assim que apertamos o play — „Este não é um filme de ficção” — fez com que muitos classificassem o filme de Furtado como um „pseudo-documentário”.
O filme-tomate (se vocês me permitem classificá-lo assim só pra resolver a questão acima) continua sendo um documentário brasileiro, porém sobre a humanidade toda. O curta mostra de forma acidíssima (como todo molho de tomate!) como a economia gera relações desiguais entre os seres humanos no contexto das sociedades „desenvolvidas”. É um retrato cruel da moderna sociedade de consumo e também uma parábola da brasileira que, vejam bem meus caros leitores, não mudou muito não desde 1989: o Brasil continua entre os 10 países mais desiguais de todo o mundo (!) e ocupa o 79o. lugar entre 188 nações no ranking de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), baseado nos dados de 2015 e divulgados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. A diferença é que hoje o quilo de tomate é muito mais caro.
Embora muito criticado pela questão da indefinição de gênero e por ter desmoralizado e desrespeitado os habitantes da „Ilha das Flores”, Ilha da Flores, o curta-metragem, ganhou fama não só no Brasil, mas no mundo inteiro, e não só por registrar essa realidade chocante de seres humanos no sul do país que retiravam seus alimentos do lixo recusado pelos porcos. O filme também recebeu louros e aplausos por retratar isso tudo em uma linguagem cinematográfica inovadora que eu, mera crítica aprendiz que sou, tentei simular no primeiro parágrafo com palavras e sintaxe. A trajetória do tomate é articulada em uma narrativa elaboradíssima, recheada de sarcasmo, sátira, e jogos de palavras, e contada através de um ritmo frenético. Enquanto acompanhamos o tomate até sua chegada à „Ilha”, somos bombardeados por uma sucessão de colagens de imagens que correspondem didaticamente ao que a voz offset fala e que, em muitos casos, geram um desconforto pela bizarrice e violência que retratam. Desconforto necessário quando se fala em políticas de alimentação, do lixo, de divisões de classe social, liberdade e comportamento humano. Dentro e fora do Brasil.
FICA A DICA:
- Não existe melhor lugar para assistir curtas-metragens do que Portacurtas, contudo Ilha das Flores está disponível apenas no Youtube.
CURIOSIDADES:
- Em 1995, o curta-metragem foi eleito pela crítica europeia como um dos 100 mais importantes curta-metragens do século;
- Os relatórios publicados pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) sobre o Brasil podem ser acessados através desse link.
Autora: Patrícia Anzini
Colaboração e tradução: Maria Wróblewska
Fot. Noom Peerapong, Unsplash; Ilha das Flores, Skyscrapercity.com; Imagem da Ilha das Flores, casacinepoa.com.br; Jorge Furtado, historiadocinemabrasileiro.com.br.