Crítica-minutos: Estômago
“O Alecrim, esse queijo gorgonzola pode ser o caralho que for meu irmão,
tu pode fazer o que quiser com ele,
mas esse negócio não vai ficar aqui dentro nem fodendo!”
Bujiú, companheiro de cela de Nonato
“O homem nasce bom. É a sociedade que o corrompe”. Embora o dictum imortal de Jean Jacques Rousseau, o tal filósofo suiço, soe um bocado antiquado para o nosso planeta hoje conhecido como “z” e rodeado de centennials , ele ainda faz sucesso nas telas de cinema. “A teoria do bom selvagem”, escrita por ele em 1755, dá as rédeas para o nosso “filme-aperitivo” do mês de maio—Estômago, lançado em 2007, dirigido por Marcos Jorge e número 74 na lista da Abraccine.
Raimundo Nonato, brilhantemente interpretado por João Miguel, é o protótipo do “bom” rousseaniano no Brasil: ele é o nosso nordestino ingênuo, puro, que nasceu livre na província, e que decide mudar-se para a “cidade grande”, a metrópole, em busca de novas oportunidades. É ao chegar lá, exato momento em que o filme inicia-se, que sua natureza começa a ser corrompida. É a sociedade moderna, com sua tirania, injustiças, servidão, seu “mundo cão”, enfim, que salienta a desigualdade entre os homens enquanto seres comunitários. É ela, também, que dita o rumo de Nonato: ao tornar-se faxineiro de um boteco, descobre seu talento inato para a cozinha com a feitura de coxinhas. E de coxinha em coxinha, o boteco transforma-se em um bar agradável e chama a atenção de Giovanni (Carlo Briani), o italiano dono de um restaurante na região. É Nonato que então se transforma em um cozinheiro de mão-cheia ao aceitar a oferta de trabalho de Giovanni. A partir da descoberta dos segredos da cozinha, Nonato também descobre o poder, a esperteza, os jogos morais e éticos dentro e fora dos restaurantes, a competição, a luxúria, a fúria por temperos e trapaças, e a luta pelo amor de uma prostituta, a Íria (Fabiula Nascimento). Não é difícil imaginar como termina uma trama que involve sexo, comida, facas, temperos e prisão.
Nada de novo, han? A tríade corrupção-sexo-comida já foi abordada inúmeras vezes, por vários diretores, escritores, filósofos, artistas, em diferentes países, com diferentes enfoques. Um exemplo? La Grande Bouffe (Marco Ferreri, 1973), um filme-crônica italiano/francês sobre gula e suicídio. Literalmente! O filme é sobre um grupo de homens que se encontra no interior da França para comer até a morte. Então, o que faz de Estômago ter sido considerado o melhor filme do ano em 2008 pelo jornal O Globo? O que é que afinal o filme tem que o fez vencer dezenove (!) prêmios, quatorze deles internacionais (sim, Estômago foi o filme brasileiro mais premiado tanto no Brasil como no exterior em 2008-2009)? O que é que tem essa fábula gastronômica brasileira que encantou tantos júris por aí afora?
Márcio Rodrigo, colaborador da Gazeta Mercantil, nos dá a deixa da “pitada de sal” que Estômago adicionou na trajetória do cinema brasileiro. É nesse parágrafo que se resume sua crítica: “Com roteiro e direção de artes primorosos, apesar de ter sido realizado com baixo orçamento, Estômago consegue resumir em sua trama tragicômica a lei da selva que hoje impera neste país, uma pátria em que ‘quem não almoça, seguramente será jantado’. Sem pretensões, nem tampouco diálogos empolados, o diretor parece fazer do manifesto oswaldiano seu guia nesta produção em que apetite, humor negro e uma dose certa de luxúria são os temperos do filme”. Estômago é isso mesmo: uma receita feroz que inclui os ingredientes e as instruções necessárias para que o expectador entenda como se “cozinha” o poder que preside as relações sociais contemporâneas. No filme de Marcos Jorge, essa sociedade é a realidade brasileira em particular; o poder, a comida; e a receita, a famosa antropofagia do escritor modernista Oswald de Andrade, que se inspira no canibalismo indígena (a devoração, nada metafórica no caso do filme, de carne humana) para refletir e propor uma saída para a “falta de sabor” que atravessa a luta pela sobrevivência dentro dessa “selva” chamada Brasil.
E não só isso! O filme conta com pitadas de cinematografia de alta qualidade: trilha sonora excepcional do italiano Giovanni Venosta; imagens inesquecíveis, ora caricatas, ora escatológicas; o roteiro contado em duas camadas de histórias que se cruzam a todo momento (Nonato antes e depois da prisão); o suspense que corre por todo o filme (você passa o tempo do filme inteiro querendo saber porque que Nonato, afinal, está na cadeia. Mistério só revelado, naturalmente, no minuto final); tudo isso dão um paladar a mais ao filme que não nos deixa fugir de uma aguda reflexão social do que é viver em uma sociedade onde uns devoram e outros são devorados. Reflexão talvez um pouco indigesta para alguns, mas que, se degustada com azeite, sal e pimenta, gera um olhar crítico visceral—e necessário—sobre ascensão social e os mecanismos imorais que ela exige. Não é à toa que o filme inicia-se com um take da boca do protagonista Nonato e termina em seu traseiro. Estômago, como o próprio Marcos Jorge, o diretor, declarou, “é uma descida pelo sistema digestivo, pelo sistema corruptor da sociedade”.
Bom apetite!
FICA A DICA
- Quer saber mais sobre como as ideias de Rousseau foram levadas para as telinhas por aí afora? Dois filmes valem a pena: o português Os Verdes Anos (Paulo Rocha, 1963) e O Enigma de Kaspar Hauser (Wernen Herzog, 1974). O primeiro, que inaugura o cinema novo lusitano e que conta com a fantástica trilha sonora de Carlos Paredes, é sobre a história do garoto Júlio, que tenta a sorte grande como sapateiro em Lisboa; o segundo, baseia-se na história real do suposto neto de Napoleão, o famoso imperador francês, que viveu desconectado da sociedade e outros seres humanos até seus 16 anos. Pra quem não precisa de legenda, Os Verdes Anos pode ser acessado neste link.
CURIOSIDADES
- Dentro os tantos prêmios que Estômago recebeu, aqui vão os de mais destaque: Festival do Rio 2007 (melhor filme, diretor, ator, prêmio especial do juri), International Film Festival Rotterdam 2008 (Lions Award, Holanda); 11o. Festival Internacional de Cine de Punta Del Este (melhor filme e ator, Uruguai); 17ème Festival de Biarritz, França (prêmio do júri); 16th Raindance Filme Festival (best international feature, Inglaterra); Festival Internacional de Cinema do Funchal (melhor filme e atriz, Portugal), etc, etc, etc.
- Estômago marca a estreia para duas pessoas: é o primeiro (!) longa do diretor Marcos Jorge e de Fabiula Nascimento, a atriz que encara a personagem da prostituta Iria;
- A ideia do filme nasceu do conto “Preso pelo estômago”, escrito por Lusa Silvestre, o roteirista do filme, e que chegou nas mãos do diretor.
Autora: Patrícia Anzini
Colaboração e tradução: Maria Wróblewska
Fot. Noom Peerapong, Unsplash; Jean Jacques Rousseau, Wikimedia, Raimundo Nonato / Alecrim – JOÃO MIGUEL & Íria – FABIULA NASCIMENTO © 2008 Zencrane Filmes, estomagoofilme.com.br .