Crítica-minutos: Abril Despedaçado
“O sangue amarelou”
Breves, o pai
Faça você mesmo: abre teu navegador e digite “lista de indicações brasileiras ao Oscar.” Logo ali embaixo, referente ao ano de 1999: Central do Brasil. Direção: Walter Salles. Pois bem, caros leitores: dessa nossa miúda e enxuta lista de indicações a um dos prêmios mais prestigiados do cinema mundial, uma delas pertence ao nosso cinema-star do mês. Mas não foi só pela indicação ao Oscar com Central do Brasil que o diretor ficou famoso nas rodas todas de amantes de cinema. Walter Salles pode ser considerado uma espécie de embaixador do cinema brasileiro mais contemporâneo. Tanto dentro quanto fora do Brasil, por sinal. Vou explicar com a devida liçenca para utilizar um flashback: o ano é 1990. O presidente do Brasil é de Mello, o primeiro “boa-pinta” a ser eleito democraticamente após os árduos e intermináveis anos de ditadura militar (1964-1985). Collor não era muito afeito às artes não, sobretudo ao cinema. Após a tomada de poder, ele extingue todos os órgãos federais até então responsáveis pelo fomento e incentivo à produção de filmes no Brasil: a antiga famosa dupla Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes) e Concine (Conselho Nacional de Cinema), os órgãos responsáveis pelas respectivas fomentação e legislação do setor, criados respectivamente em 1969 e 1976. Pois não era mais fácil extinguir o Ministério da Cultura todo? Dito e feito! Parece piada, mas não foi. Com tantos gestos honrosos em relação à cultural brasileira, o cinema na “era Collor” entra em total colapso. Naturalmente.
Walter Salles tornou-se, acima de tudo, uma inspiração, um “herói de nossa gente”
Agora imagina que o ano é 1999, quase uma década após o início da grande seca cinematográfica brasileira. Você liga tua televisão pra assistir a premiação do Oscar. E entre a lista dos melhores filmes estrangeiros do ano, lá está um que, embora produzido juntamente com a França (a co-produção foi a solução financeira que muitos diretores brasileiros encontraram para sobreviver durante a seca), ainda era brasileiríssimo, dentro e fora do título: Central do Brasil. E é aqui que entra nosso Walter: aquele não era só um filme concorrendo ao Oscar; era uma vitória de toda uma geração, uma esperança concreta de que ainda era possível produzir arte de reconhecimento internacional no país; e Walter Salles tornou-se, acima de tudo, uma inspiração, um “herói de nossa gente”, como Mário de Andrade bem caracterizou seu Macunaíma, um dos personagens mais famosos da literatura brasileira. Afinal, ele colocara o Brasil no mapa dos mais importantes produtores de filmes.
E foi por aí, a partir do que hoje é chamado de “retomada” do cinema brasileiro, que tudo decolou na sua carreira. Hoje, Salles, junto com Fernando Meirelles, tornou-se um dos “bam-bam-bam” lá fora, prestígio que o levou a dirigir o aclamado Diários de Motocicleta em 2003 e Na Estrada, a versão nas telas de On the Road do escritor beat Jack Kerouac, lançado em 2012. Abril Despedaçado (2001), seu quinto longa, também se encontra na lista feita pela Abraccine dos 100 Melhores Filmes Brasileiros de Todos os Tempos, juntamente com o galardoado Central do Brasil e Terra Estrangeira (1996). O filme é uma adaptação do livro homônimo do autor albanês Ismail Kandaré para o sertão de 1910, a região semi-desértica localizada no nordeste do Brasil. Nele, vive Tonho (Rodrigo Santoro) e sua família, os Breves. Tonho é impelido por seu pai (José Dumont) para vingar a morte de seu irmão mais velho, assassinado pela família rival, os Ferreiras. Assim que a camisa do irmão falecido, até então vermelha de sangue, amarela no varal, Tonho sai, de espingarda em mãos, em busca da honra e rivalidade merecidas. E é disso que se trata a história do filme: a lógica da violência e da tradição de um mundo sem estado regulamentador algum e só regido pela antiga “Lei de talião”, mais conhecida pela máxima “olho por olho, dente por dente”.
Embora o livro de Kadré tenha outras duas adaptações para as telas, a brasileira foi a única que agradou o escritor. O filme é, de fato, magistral e muita dessa magnitude deve-se ao uso exclusivo de luz natural, opção felizmente escolhida pelo outro Walter, o Carvalho, diretor de fotografia aclamadíssimo em território nacional. Aquele amarelar da camisa é a simbologia e definição mesma de como os “Walters”, o Salles e o Carvalho, trabalham de forma belíssima com imagem, cor e textura nesse filme: tudo é amarelo, a cor típica e atroz da aridez tão característica do sertão. Aliás, a brutalidade e secura da paisagem monocromática sertaneja viram um dos motivos principais que se derrama pelo filme todo: nos movimentos condicionados (os circulares do moedor e dos bois no engenho que a família produz rapadura que rodam, rodam e rodam sem sair do lugar; o girar constante de Clara na corda do circo; e o movimento nos próprios passos dos personagens, seja para caminho da matança ou da morte,); na impersonalização de alguns personagens (o irmão mais novo de Tonho é chamado simplesmente de “menino,” e o pai, o Breves, leva o nome da família,); na aridez dos sentimentos (os personagens raramente sorriem e, em muitos casos, mal pronunciam uma palavra qualquer); e na violência daquele mundo poderoso, profundo e trágico. Abril Despedaçado é, antes de tudo, uma história belíssima de esperança, libertação e crescimento humano.
FICA A DICA
- O livro que o menino ganha de presente de Clara é um protagonista poderoso: é através dele que aquele miúdo imagina um outro mundo, uma outra alternativa.
- Preste atenção também na chuva! Além de ser uma das cenas mais bonitas do filme e um dos símbolos mais icônicos do mundo sertanejo (a água é de difícil acesso por lá), a chegada da chuva anuncia o renascimento dos personagens e daquele mundo em que eles vivem. Corre assistir ao filme pra saber como!
CURIOSIDADES
- Tanto a Embrafilme, quanto o Concine foram órgãos federais criados pelos militares em poder nos anos de 1969 e 1976. Algumas das funções desempenhadas, sobretudo pelo Concine (a normatização e fiscalização das atividades cinematográficas no país, a formulação de políticas para o cinema, e mesmo a coleta de dados sobre produção, distribuição e mercado) passaram mais de uma década sem qualquer órgão responsável. A situação só muda em 2001 com a criação da ainda atuante Ancine (Agência Nacional de Cinema) durante o governo Fernando Henrique Cardoso;
- No Brasil, institui-se políticas públicas para a realização de projetos artístico-culturais. A mais famosa delas é “Lei Rouanet”, a lei de incentivo fiscal sancionada pelo próprio Collor em 1991. Essa lei possibilita que tanto empresas quanto cidadãos apliquem uma parte do Imposto de Renda (em forma de doações ou patrocínios) no apoio direto a projetos culturais já aprovados pelo Ministério da Cultura brasileiro. Em outras palavras, o Governo Federal oferece uma ferramenta para que a sociedade possa aplicar parte do dinheiro de seus impostos em ações culturais;
- Foi extamente Abril Despedaçado que consagrou e deu visibilidade internacional ao ator Rodrigo Santoro (“Tonho”).
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Autora: Patrícia Anzini
Colaboração e tradução: Maria Wróblewska
Fot. Noom Peerapong, Unsplash; Walter Salles, Wikimedia, Rodrigo Santoro e Ravi Ramos Lacerda em “Abril Despedaçado”, IMDB.