
Um Filme Marcado pela Resistência
“Aqui jaz João Pedro Teixeira, mártir da reforma agrária”
Ferreira Gullar ou Tite de Lemos
O cinema documental, tanto em sua produção quanto em sua crítica, ainda caminha a passos curtos em sua trajetória de afirmação no Brasil. Com viés etnográfico-científico no começo do século vinte, e passando por uma espécie de “papel de escola” para cineastas iniciantes sobretudo nas décadas de 30 e 40 (intenção tão cara aos mais de 300 documentários produzidos pelo diretor pioneiro Humberto Mauro), é somente nas décadas de 60 e 70 que esse gênero dá uma chacoalhada como expressão artística e estética. Essa é a época do início do período moderno dos documentários brasileiros e também durante a qual a linguagem do gênero começa a chamar atenção de alguns olhos um pouco mais atentos.
Em diálogo com as conquistas estéticas e experimentais tanto do cinema ficcional nacional da década de 60 (vivas ao Cinema Novo brasileiro, Glauber Rocha & co.!) quanto estrangeiras (vivas ao cinema-verdade francês de Jean Rouch & co.!), os novos documentaristas rompem com aquele didatismo inicial de 30/40 e partem para a criatividade. Surge uma nova postura quanto aos temas tratados: volta-se para o registro de tradições populares e artísticas, bem como para a problemática social; surge uma novo protocolo em relação à linguagem: ela torna-se gradualmente fragmentada, mais reflexiva e ambígua; há, acima de tudo, a entrada em cena de uma nova discussão fundamental entre esses cineastas: “até que ponto o que é documentado é, de fato, real?” Eduardo Coutinho, nosso pop star, ou melhor, movie star do mês de fevereiro, contribuiu vividamente para intensificar essas discussões da melhor maneira possível: fazendo filmes.
Considerado o maior documentarista brasileiro de todos os tempos, tanto por aqueles comendo a pipoca dentro do cinema, quanto por aqueles com uma câmera na mão, Eduardo Coutinho deixou uma produção de mais de vinte obras ao longo de uma carreira de mais de quatro décadas. E é com suas palavras que resumo seu legado para as páginas centrais do cinema documental nacional e, sobretudo, para a própria história dos brasileiros: “o importante é fazer filmes como uma conversa”. Seus filmes são, de fato, bem isso mesmo: falações. Pois Coutinho foi bem esperto: deixou a própria arte de contar algo transformar-se em seu método e estilo próprios de filmar. Cada um de seus documentários é um experimento, um convite ao expectador para se desafiar pela própria narrativa e ver e ouvir aquilo que está escondido, em silêncio, preso nas entrelinhas do diálogo, das palavras que saem das bocas de seus “personagens-pessoas”, tão comuns e anônimos.
É por isso ter sido o método de Coutinho chamado de “etnografia selvagem”: ao captar vários aspectos de brasileiros inseridos em suas comunidades através desse “método-falação”, Coutinho rompe profundamente com a noção clássica e científica de etnografia, aquela baseada primordialmente na coleta de dados resultantes da observação contínua e distante do “objeto em estudo”. E com a ajuda do “desleixo” técnico tão caro aos seus docs (não é raro ver um microfone, um tripé, ou um assistente nas cenas), seus filmes revolucionaram a produção do gênero: de um lado ajudaram a derrubar o mito da neutralidade nos documentários (a presença constante de Coutinho nas cenas, caminhando de lá pra cá, deixava claro que o mundo do documentário é, também, criação, imaginação); por outro, desfizeram a separação entre o diretor e os personagens (Coutinho aproximava-se bastante de seus entrevistados e sempre aparecia nos takes, transformando o que era pra ser um “depoimento” em um “bate-papo”).
Nada melhor do que Cabra marcado para morrer, o quarto filme na nossa lista dos 100 melhores filmes do cinema brasileiro, para ilustrar e salientar essa confusão entre realidade e ficção. Ao buscar no google uma descrição da história do filme, é bem provável que é isso que você vai encontrar: João Pedro Teixeira, presidente e fundador da então Liga Camponesa de Sapé, cidade do estado da Paraíba, é brutalmente assassinado em 1962 por ordem de latifundiários. Poucos dia depois, ao viajar para João Pessoa (Paraíba) e se informar do evento, Coutinho tem a ideia de rodar um filme ficcional sobre a vida de João Pedro. E assim foi: em 1964, as câmeras são ligadas e as claquetes cantadas. Cabra marcado não era uma mera empreitada ficcional para a atuação das estrelas brasileiras de cinema da época; era, acima de tudo, um semi-doc: a ficção contava com a participação dos reais camponeses do Engenho Galiléia, do estado de Pernambuco, e com nada mais nada menos que a atuação de Elizabeth Teixeira, a própria viúva de João Pedro. Foi um projeto demasiado ousado para um país à beira de entrar em regime ditatorial: Coutinho e todo seu material então taxados de “subversivo” – tripés, refletores, um megafone e os negativos em latas de filme – é apreendido pelos militares em fevereiro de 1964, poucas semanas após o início das filmagens. O diretor e parte de sua equipe se esconderam, para logo fugirem para a cidade de Recife. Os cinco membros da equipe que ficaram, foram presos. As filmagens, interrompidas. Dezessete anos depois, em um Brasil já caminhando para a abertura democrática, Coutinho retoma o projeto, procura Elizabeth Teixeira e outros participantes do filme de 1964 e, o que era pra ser um história ficcional, vira um documentário. Cabra marcado para morrer finalmente vem ao público brasileiro em 1984.

Cabra marcado é, portanto, um filme “boneca-russa”: é a história de João Pedro Teixeira que vira a de Elizabeth Teixeira, que vira do paradeiro dos filhos do casal, que vira dos camponeses na década de 1960, que vira da ditadura militar brasileira e seus desdobramentos políticos e culturais, que vira de gêneros cinematográficos (um documentário dentro de uma ficção), que vira uma história da história de um filme de Eduardo Coutinho. E por aí vai. Cabra é, antes de tudo, um caso excepcional – e literal – de um filme marcado pela “resistência” ao tempo, aos 20 anos que levou para ser finalizado. Cabra é, também, marcado pela sobrevivência desses brasileiros durante um dos momentos mais desafiadores e repressores da história política brasileira, o regime militar de 1964. E dessa sobrevivência ficou um documentário sobre resistência, esperança, liberdade, e tempo.
FICA A DICA:
- Além de Cabra marcado para morrer, Eduardo Coutinho conta com outros dois filmes na lista da Abraccine: Jogo de Cena de 2007 e Edifício Master, de 2002. Vale a pena conferir!
- Para uma breve história da trajetória do cine documental brasileiro, e para aqueles que querem afinar o português, vale também a pena conferir: http://topicosemcinema.blogspot.com/p/breve-historia-do-cinema-documentario.html
CURIOSIDADES:
- Cabra marcado para morrer foi inicialmente idealizado como um filme de ficção baseado em O Rio, poema de João Cabral de Melo Neto. O poeta, que inicialmente concordara com o projeto, envia um telegrama a Coutinho para dizer que não estava mais de acordo. Até hoje, não sabemos o porquê;
- O filme foi premiado em festivais de Berlim, Paris, Havana e no Brasil;
- A história do filme é toda narrada. Porém, nos créditos finais, são duas as vozes que são listadas: a dos escritores Ferreira Gullar e Tite de Lemos. Por isso a incerteza da autoria de nossa epígrafe de abertura dessa “crítica-minuto”;
- Coutinho não seguiu roteiro algum para terminar o filme, já na década de 80. Aliás, Coutinho era famoso, também, por não escrever roteiros. Como ele diz em uma entrevista publicada na Revista Filme Cultura, publicada em 1984, “Não escrevi nada. Mas tinha na cabeça o objetivo de contar algumas histórias. E muitas perguntas. E num caderno, anotados muitos dados sobre os personagens e a história das ligas”. Quer ler o resto da entrevista? http://www.contracampo.com.br/27/realsemaspas.htm
Autora:
Patrícia Anzini
Colaboração: Maria Wróblewska
Fot. Noom Peerapong, Unsplash; Modds, Flickr, Cosme Alves Netto, Eduardo Coutinho e Elizabeth Teixeira, Wikimedia Commons.
Ciclo: Na cabeça e na tela. Crítica-minutos dos 100 Melhores Filmes Brasileiros (segundo a Associação Brasileira de Cinema, a Abraccine)