Não se muda o mundo com Cinema Novo
“Não se muda o mundo com lágrimas!” Paulo Martins
“Na cabeça e na tela” tem o prazer de iniciar sua série de “crítica-minutos” sobre os 100 melhores filmes do cinema brasileiro com o filme número 5: Terra em Transe. A obra, que veio ao público em 1967, entrou para a história como a expoente do chamado “Cinema Novo” brasileiro; o diretor e roteirista, Glauber Rocha (1939-1981), como uma espécie de cult das telas nacionais que toda a “crème” da crítica brasileira não se cansa de bajular, com aplausos, louros, e artigos aqui e ali. Prestígio e canonização à parte, Terra em Transe é, de fato, uma boa pedida para quem deseja dar os primeiros passos e apreciar a essência do cinema autoral brasileiro. E também como os grandes impasses socais, políticos e ideológicos de uma nação a beira de enfrentar um de seus momentos históricos mais desafiadores e turbulentos foram traduzidos em luz, movimento, e ação.
Até Glauber Rocha & co. adentrarem-se no cenário nacional, a década de 50 no Brasil viu-se “Hollywoodiana”: era o auge das chanchadas produzidas pela lendária Atlântida (1947-1959), a companhia cinematográfica mais bem sucedida do Brasil. Esse gênero, um mix de musicais, comédias e épicos recheado de muita gritaria, carnival e prosaísmo, lotaram, por anos, as salas nacionais de cinema. Na década seguinte, uma pequena parcela desses expectadores das chanchadas decide que era hora de romper com a excessiva enfâse comercial e dependênca colonial dessas obras “americanizadas” e produzir um cinema mais autoral, criativo e, abre aspas, autenticamente nacional. É daí que surge o Cinema Novo, um “nome-etiqueta” utilizado por críticos e acadêmicos para descrever e se referir historicamente aos filmes produzidos entre, grosso modo, 1960 e 1972. Seus diretores, até então “novos”, jogam-se, com vigor e disposição, na tentativa de criar uma nova relação filme-criação (e filme-produção) com forte apelo pedagógico: a sala de cinema não era mais para entreter e ressoar gargalhadas. Ela era, sim, um instrumento fundamental para conscientizar as “massas” e, dessa forma, transformar o país. É dessa combinação que vai aparecer, no começo da década de 60, o supra-sumo—e a “tríade-nova”—do cinema nacional: Os Fuzis (1963), de Ruy Guerra; Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos; e Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), do nosso já citado premiere Glauber Rocha.
O Cinema Novo foi uma mistura—metade neorrealismo italiano (sobretudo nos temas e na produção “barateada”, a de reduzido orçamento) e metade nouvelle vague francesa (a verve mais iconoclástica; o experimento radical da forma e linguagem cinematográficas). O Cinema Novo foi também “novo”: liberando definitivamente a câmera do tripé, esses diretores buscavam rodar filmes voltados à uma realidade brasileira mais adequada à situação social a política da época com baixíssima verba. Daí a explicação do mote “novo”, hoje tão icônico, de Glauber Rocha: “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”. Cinemanovistas, em suma, foram responsáveis por produzirem obras que curiosamente misturavam intelectualismo estético com um forte apelo retórico populista. E, assim, escancararam as portas de um Brasil pouco conhecido: a audiência teve que encarar e engolir os tipos sociais “subdesenvolvidos” até então negligenciados historica e esteticamente: o sertanejo, o negro, o favelado, o marginalizado, o operário, o nordestino, o não enquadrado socio, politico, and culturalmente.
Terra em Transe enquadra-se na chamada segunda fase do Cinema Novo (1964-1968). Escrito e produzido durante a ditadura militar (1964-1985), a obra foi proibida em todo território nacional, sendo só liberada após cortes e solicitações de mudança pela censura. A história se passa em uma Terra nomeada de Eldorado, país fictício e fruto da imaginação mais que sugestiva de Glauber. Felipe Vieira (José Lewgoy), governador emergente da província de Alecrim e líder populista de esquerda, decide não resistir ao coup liderado por Porfírio Diaz (Paulo Autran), líder carismático conservador e a quem Paulo Martins (Jardel Filho), o protagonista que assume a narração e o tom de quase letargia impresso ao roteiro, se achava ligado desde a infância. Após uma acirrada discussão com Vieira, Paulo, acompanhado por Sara, sua companheira e secretária de Vieira, foge do palácio do governador para ser ferido mortalmente pela polícia de Diaz. Enquanto agoniza à beira da morte, vemos, em flash blacks sinuosos e desconexos, a trajetória política e ideológica de Paulo na Terra e o que o levou até esse ultimo momento final de Transe.
Embora pareça um tanto confuso e complexo, Terra em Transe é uma grande sacada para se discutir os embates, sobretudo políticos, de um Brasil de 60. Paulo Martins, é o reflexo das consequências do coup, real e fictício, de 1964: a luta sufocante para aceitar a falha dos ideais democráticos de uma nação. Essa falha, que assombra tanto Paulo quanto a Terra, é retratada com aquela “câmera na mão”—o instrumento do Transe estético tão particular de Glauber—e registrada nas sequências noir sinuosas, nauseantes e sincopadas. A sensação desse Transe é simulada e intensificada no próprio público que observa, entre tiros de metralhadoras, valsas famosas, óperas e jazz, a esfera pública, posta à prova do deboche: entre orgias e farras, os representantes políticos de Eldorado tornam-se figuras pitorescas, decadentes, exageradamente miseráveis. Ao espectador crítico, porém, fica a sensação não só de ter ouvido o grito de Paulo Martins—“Não se muda o mundo com lágrimas!”—, mas também o convite para repensar e resituar a atualidade desse grito. Terra em Transe é a síntese do circo e do caos político, não só latinoamericano; Terra em Transe é, antes de tudo, um convite para revisitar o fanatismo, a corrupção e a realidade massacrante e escancarada do cenário político atual brasileiro.
FICA A DICA:
- Não desista após dar o Lembre-se que o acontecimento “real” do filme todo é entre o momento em que Paulo Martins leva os tiros e morre. O restante, é uma série de sequências em flashback filmadas com uma câmara-malabarista que exige uma atenção mais que especial do expectador.
- Abra os olhos para a cena mais clássica do filme: o momento em que Paulo Martins olha diretamente para a tela e nos provoca ao literalmente calar a voz do povo.
CURIOSIDADES:
- Porfírio Diaz foi o nome de um ditador que governou o México por 31 anos;
- O trecho escolhido como epígrafe para o filme é composto pelos versos 1,2, 7 e 8 da primeira estrofe do poema “Balada”, publicado em 1935 e escrito pelo poeta brasileiro Mário Faustino (1930-1962). “Balada” é uma elegia (canto em honra dos mortos) e descreve o suicídio de um poeta que não consegue manter a pureza de sua alma diante da corrupção humana;
- Glauber morreu precocemente em 1981, vítima de uma pericardite viral. Seu corpo foi simbolicamente velado no Parque Lage, Rio de Janeiro, cenário principal de Terra em Transe;
- O cineasta Americana Martin Scorsese, sempre que pode, deixa clara sua paixão pelos filmes de Glauber. Os dois, de fato, se encontraram em algumas ocasiões, incluindo suas participações no Festival de Veneza, em 1980. Aqui vai a prova para os curiosos de plantão: https://www.youtube.com/watch?v=Lw4eT1vhrcw
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Autora:
Patrícia Anzini
Colaboração: Maria Wróblewska
Fot. Noom Peerapong, Unsplash; Glauber Rocha, Wikimedia Commons; cena do filme Terra em Transe, Film Society Lincoln Center
Ciclo: Na cabeça e na tela. Crítica-minutos dos 100 Melhores Filmes Brasileiros (segundo a Associação Brasileira de Cinema, a Abraccine)
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